segunda-feira, 18 de março de 2024

O sal do silêncio (112)

Juan Antonio Aguirre, Bailarinas, 1990

Dançam a sagração da Primavera envoltas no azul dos oceanos. Bacantes sem mácula, transportam a voz do deus no silêncio da boca. Giram, rodopiam, elevam-se da terra e a ela voltam. A sua leveza é o sal com que salgam o segredo do mundo, o enigma do sangue, o mistério da paixão.

sábado, 16 de março de 2024

Sonetos de Inverno (12)

Gilles Aillaud, Deserto, 1986

Muda o mundo, na vereda do tempo.

Estações vêm, estações vão, sem fim.

O Inverno decaiu, sombra morta

no jardim onde as rosas declinam.

 

No rumor azul do vento, escuta-se

uma voz fremente, a pura essência

do que passa sem deixar um sinal

ou um rasto na areia do deserto.

 

Trazer mundos dos jardins esquecidos,

Trazer sombras dos Invernos passados,

Trazer rosas da vereda da morte.

 

Sou o vento que apaga os rastos,

a voz pura que fremente se cala

o sinal que no deserto se esconde.

 

Março de 2024

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Câmara discreta (20)

Ed van der Elsken, Self-portrait with Ata Kandó, 1953

Surpreender-se a si mesmo, deixar-se apanhar pela câmara que está nas próprias mãos, olhar-se no momento em que se observava. Depois, deixar vir uma longa e lenta interrogação. Quem é aquele que vejo? Assim começa uma exercício de demorada violência, um caminho em que a faca afiada da dúvida corta o pano frágil da certeza. Uma coisa é a identidade recebida na passividade da existência, uma outra é a identidade conquistada através do duro combate iniciado pela inocente pergunta quem sou eu?

terça-feira, 12 de março de 2024

Geometrias de fogo (27)

Joaquim Rodrigo, Trás-os-Montes, 1964 (Gulbenkian)

Há uma geometria de fogo na geografia da Terra. A incandescência esconde-se para além do horizonte, mas retorna sobre as planícies, as montanhas e os vales, desenhando triângulos e rectângulos. Por vezes, deslizam do céu círculos perfeitos. Logo se transformam em hexágonos e, mais à frente, em pentágonos. Quando a Lua nasce, o fogo é reabsorvido pela noite e a Terra descansa da sua ardente geografia.

domingo, 10 de março de 2024

No limiar (16)

Victor Palla, sem título, 1990 (Gulbenkian)

As figuras hesitam na fímbria da realidade. Ainda não estão certas da sua essência e temem aventurar-se numa existência que lhes seja estranha. Movem-se em ambientes translúcidos, evitam a transparência, enquanto tudo à sua volta está mergulhado no oceano inquieto da indecisão, nas águas turvas onde nem o dia nem a noite são nítidos. Por vezes, aproximam-se umas das outras. Procuram a irmandade dos que já deixaram a terra deserta do nada, mas ainda não chegaram às planícies exuberantes do ser. Buscam na fraternidade consolação, como aqueles que chegaram à existência a encontram ao poisar os olhos num ramo de camélias.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sonetos de Inverno (11)

Mário de Oliveira, Lucalena de las Torres, 1967 (Gulbenkian)

Uma voz sediciosa soletra

a palavra e a revolta de Inverno.

As estrelas rodopiam ao vento,

astros mudos no silêncio da sombra

 

Apressado, veio Março tomado

pelo canto dos antigos profetas.

Folhas mortas, castas, caem das árvores,

sussurrando sortilégios e espantos.

 

Pelas frias avenidas de Inverno,

do silêncio soletrado virão

inocentes as palavras de sal.

 

Auspícios descem de bocas caladas.

Os profetas são agora estátuas

nos jardins onde os mortos se calam.

 

Março de 2024

quarta-feira, 6 de março de 2024

Arqueologias do espírito 29

Ferdinand Olivier, Procession of Pilgrims in the Forest, 1814 

Talvez o espírito tenha descido sobre os homens na sombra da floresta. Ali, aquele animal desprotegido encontrava abrigo e, por instantes, podia esquecer o medo terrível que o envolvia. Sob os ramos do arvoredo, escutava a passagem do vento pelas folhas e descobria os raios luminosos que fendiam a copa das árvores para reverberarem na erva húmida. Por vezes, os homens encontravam-se na clareira e deixavam que a luz os banhasse, mas logo o perigo de estarem expostos os fazia voltar para a sombra, onde se sentavam e narravam longamente as aventuras que tinham vivido ou que inventavam naquela hora. Ao contar, ao inventar, uma propriedade nova nascia dentro de cada um e arrancava-o à pura animalidade de onde tinha vindo. Era o espírito que descia sobre ele e o tornava num outro ser.

domingo, 3 de março de 2024

A sombra da água (27)

Fernando Calhau, sem título #441, 1980 (Gulbenkian)

A água é uma sombra projectada sobre a superfície da Terra. Avança fremente pelos canais desenhados por um arquitecto preso ao flúor da alucinação, rasga as velhas rochas para descobrir um caminho nunca pensado, cobre os abismos para que os mortais possam descansar os seus olhos sem temer a dor da queda.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Sonetos de Inverno (10)

José Dominguez Alvarez, sem título (Aspecto de rua com figuras) (Gulbenkian)

A tristeza destes dias de frio,

sob um sol sem o motim do Verão.

Nostalgia dos murmúrios da infância,

desventura duma vida exígua.

 

Devoradas pelo tempo, as horas

rodopiam perturbadas sem parar.

Turbilhão feito de ócio e dor,

a penumbra dum sonoro segredo.

 

A infância deambula nos dedos

com que colho a nostalgia da vida,

tão exígua na ventura que houve.

 

Eis o vórtice onde tudo se perde,

turbilhão, dor infinita das horas,

onde canto em secreto silêncio.

 

Fevereiro de 2024

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O sal do silêncio (111)

João Dixo, Quem pinta, pinta-se, 1978 (Gulbenkian)

A reflexividade dos nossos actos é um pacto com o silêncio. Entre o que fazemos e o que somos, nesse interstício que vai de nós a nós, há um silêncio de fundo, tão radical que raramente damos por ele. É nele, porém, que unimos a poeira do que fazemos ao sal que somos.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A memória do ar (26)

Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian)

Voar, eis o vício do vento. Deslocar-se sobre os segredos dos homens, para os envolver no tremendo da ventania, no terrível do vendaval. Por vezes, o ar toma o nome de ciclone, corre apressado numa fúria desmedida, desloca-se em turbilhão, como se fosse habitado por uma raiva despida de razões, como se tivesse cansado de segredos e de homens.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (9)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

A paisagem assombrada da tarde,

vendaval vindo no voo do vento,

as mulheres de cabelos revoltos,

os cavalos delicados da noite.

 

Vou, de Inverno em Inverno, sombrio,

faço luz na escuridão da caverna,

onde oiço o ecoar da memória

afogada no silêncio do tempo.

 

Cavaleiro sem cavalo na noite.

É a hora de rasgar o caminho

na paisagem fria e negra de névoa.

 

Sou o eco que rasura a memória.

Sou a luz branca da escura caverna.

Sou o tempo e a sombra de Inverno.

 

Fevereiro de 2024 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Geometrias de fogo (26)

Anton Zwengauer, Landscape with Deer at Sunset, 1847

Era um lago habitado por um fogo plácido, um incêndio de pétalas reconciliado com a água e a terra, desejoso de serenidade, amante dos dias de sol e das noites estreladas. Um fogo feito de frutos resplandecentes e de esperanças sensatas, um fogo inclinado para o crepúsculo, um fogo que se move lentamente entre ás águas paradas e o sangue desatinado do coração.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A sombra da água (26)

Piotr Mondrian, Farm with Trees and Water, 1906

É uma água sem o sal da viagem, sem a sombra das noites. Irrompe pura na Terra ou cai solícita dos céus. Nela, não há navios, nem os pescadores procuram a harmonia dos peixes. De noite, murmura canções tecidas com o fio do silêncio; de dia, deixa que da sua boca se evapore um hálito de rosas.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Haikai do Viandante (435)

José Dominguez Alvarez, Paisagem de Montanha (Gulbenkian)

 Sombras nos caminhos

são símbolos na montanha.

Sangue de Outono.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (8)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

A camisa desgastada de Invernos

é um trapo enrolado nas mãos,

é o corpo pelo tempo rasgado,

uma mancha que declina sem luz.

 

Revestido de matéria efémera,

o espírito balança ao relento.

Vai e vem, preso ao fulgor do que passa,

tão perdido no delíquio dos dias.

 

Atormentam-me as sombras esquivas

declinadas pela luz deste Inverno,

a camisa corrompida do corpo.

 

Se o sol resplandece nas montanhas,

o espírito encontra o caminho

para a casa que ao longe o espera.

 

Fevereiro de 2024 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

No limiar (15)

Carlos Carneiro, sem título, 1970 (Gulbenkian)

A realidade não é um presença constante, dela está ausente a placidez das coisas eternas. É uma aproximação lenta, um vir de longe, atravessando as areias dos desertos, as águas escuras e inóspitas dos oceanos, as florestas cerradas no dorso das montanhas. Aproxima-se como uma sombra, porque é morosa a procissão que tem de percorrer a partir do nada, elaborando-se em esboços sem fim, ganhando consistência no lusco-fusco dos dias, até que atravessa o limiar do mundo e encontra a carne que lhe cobre o corpo e nos faz exclamar eis a realidade viva.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A memória do ar (25)

Sérvulo Esmeraldo, Vibrations, 1963 (Gulbenkian)

O ar divide-se em camadas. Se o vento o anima, então cada uma começa a vibrar e ondas sonoras propagam-se sobre a Terra, umas violentas, outras dóceis, outras ainda saturadas de harmonia e equilíbrio. Os homens pensam então escutar a música das esferas celestes, mas é apenas uma canção da Terra vinda da púrpura ébria da atmosfera.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O sal do silêncio (110)

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Um ruído irrompe na eterna paz da lezíria. Cavalos e toiros são um traço na paisagem, a marca de um instante que se manifesta para logo desaparecer no sal da quietude ou no silêncio onde o tempo se devora a si mesmo, cansado da viagem.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (7)

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Abandono as coisas deste jardim,

folhas mortas dum Inverno sem luz.

Ergo ágil a candeia do silêncio

sobre a noite rasurada do mundo.

 

Oiço passos na morada do homem.

Oiço cânticos no escuro das ruas.

Um segredo no passar de quem parte.

Um enigma desenhado nas vozes.

 

A substância da viagem cintila

no jardim da noite húmida e cândida,

no altar onde o Inverno se entrega.

 

Ó as vozes de quem parte sem rumo.

Ó os passos de quem canta calado.

Nem segredos, nem enigmas. Silêncio.

 

Fevereiro de 2024

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Meditação breve (193) Paisagem

João Navarro Hogan, Paisagem, 1939 (Gulbenkian)

Quando se ouve a palavra paisagem, um obscuro instinto leva-nos a imaginar espaços abertos e luminosos, onde a vida se desenrola num exercício de equilíbrio a que chamamos harmonia. Nesse hábito, esconde-se o desejo de que a vida seja assim, luminosa e aberta como bela paisagem campestre, mesmo que a luz, por intensa, oculte a obscuridade que ali habita. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Geometrias de fogo (25)

Vincent Van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889

O sol envia dardos de fogo e a terra abre-se para que eles a penetrem com a sua ardência fulgurante. É um fogo cintilante que aquece os mundo subterrâneos, crepita no silêncio das noites, toca as raízes húmidas das oliveiras, sobe-lhes pelos troncos e ramos até que nos lagares os frutos se metamorfoseiam num incêndio líquido, belo como uma promessa há muito feita e agora realizada.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Haikai do Viandante (434)

Francis Picabia, Amanhecer na bruma, Montiguy, 1905

 O dia revela-se

nas árvores matinais.

Bramidos e brumas.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (6)

Philip Guston, Winter, 1963

 A verdade do Inverno esconde-se

na floresta onde as pétalas caem

sobre o chão negro dos dias passados,

sobre o leito onde dorme o futuro.

 

As sibilas dançam, cantam os hinos

macerados pelas chuvas arcaicas.

Os segredos de outrora desvelam-se

no rumor da boca fria dos profetas.

 

Natureza, a verdade recobre

as tuas horas com um manto de pétalas

renascidas no desvão da floresta.

 

O silêncio, um presságio arcaico

dança imóvel no segredo da noite.

Uma rosa de sal sangra nos céus.

 

Janeiro de 2024


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A sombra da água (25)

Ricardo da Cruz-Filipe, Mar n.º 1, 1983 (Gulbenkian)

Sento-me a ver o mar. Oiço o cântico das ondas, prescruto-lhes o ritmo, escando, no silêncio da praia, cada verso que traz e leva, como uma sombra de seda, a água salgada. Em transe, observo o oceano desdobrando-se, tomado pela inquietação que se abre no ventre da manhã rasgada pelos dardos do Sol.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Histórias sem nexo 31. Titilações

João Paulo, Desenho I, 1962 (Gulbenkian)

O til tirânico tirou uma tira de tiramisu. Tibúrcio, o tio tinhoso, tiritava na tina do Tivoli e a tia Tibéria titilava tíbia e sem tino. O titã do Tito tinha timbre de til na tigela, de onde tios e tias tiravam típicos tinidos sem timoneiro.


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A memória do ar (24)

Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian)

Para lá do cosmos imaginado, resta um mundo aéreo, fabricado por correntes de ar presas à luz de cada dia. É um mundo oculto na sua transparência, onde germina a disposição para o voo e o medo da queda. Existe, se deixarmos a imaginação cavalgar os prados da consciência. Desaparece, se sujeitamos os grandes espaço à gramática das pequenas coisas. 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Sonetos de Inverno (5)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

Os crepúsculos de Inverno cintilam

sobre a sombra do dia, trazem fogo

ao amor das coisas raras e luz

à morada fria e rude dos deuses.

 

Os poentes são mistérios, promessas

do espírito, a água lustral

onde, ávidos, lavamos os corpos

e os abrimos ao orvalho da noite.

 

No fulgor de cada hora crepita

um crepúsculo na sombra dos deuses,

um amor na invernia deste mundo.

 

Toco o corpo que se abre ao poente.

No orvalho de ardor e mistério,

sinto a água que na noite me espera.

 

Janeiro de 2024


domingo, 21 de janeiro de 2024

Geometrias de fogo (24)

Noronha da Costa, Pôr do Sol (Gulbenkian)

O sol cinda-se em línguas de fogo. Ao arderem, abrem a terra aos segredos do céu. Brilham na antecâmara da noite, dançam trémulas na casa do crepúsculo, contorcem-se em ondas luminosas, como se nelas houvesse a presença de um abecedário que, tocado pela cintilação do fogo, se desdobrasse em mil línguas, conhecidas e desconhecidas, públicas e secretas, puras e impuras.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O sal do silêncio (109)

Carl Theodor Reiffenstein, Abgesägte Baumstämme vor einer Mauer in Oberwesel, 1858

O cântico do vento foi daqueles troncos suprimido. Um dia suportaram grandes ramagens e folhas vibrantes. O vento tocava-as e uma música vinda de terra elevava-se aos céus. Agora, submetidos ao império da utilidade, jazem esquecidos no chão. Da sua antiga musicalidade nada resta. Sobra-lhes o silêncio, não o silêncio que há no centro da vida, mas aquele que acompanha a decomposição dos corpos e a vitória da morte.