terça-feira, 5 de março de 2013

A lei e a misericórdia

Caravaggio - Siete obras de misericordia (1607)

Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?» Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino do Céu é comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Logo ao princípio, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo com que pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os seus bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se, então, aos seus pés, dizendo: 'Concede-me um prazo e tudo te pagarei.’ Levado pela compaixão, o senhor daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o, apertou-lhe o pescoço e sufocava-o, dizendo: 'Paga o que me deves!’ O seu companheiro caiu a seus pés, suplicando: 'Concede-me um prazo que eu te pagarei.’ Mas ele não concordou e mandou-o prender, até que pagasse tudo quanto lhe devia. Ao verem o que tinha acontecido, os outros companheiros, contristados, foram contá-lo ao seu senhor. O senhor mandou-o, então, chamar e disse-lhe: 'Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque assim mo suplicaste; não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?’ E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos até que pagasse tudo o que devia. Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração.» (Mateus 18,21-35) [Comentário de Cesário de Arles aqui]

O texto trata da natureza da justiça e da misericórdia divinas e estabelece um padrão de comportamento para as relações humanas. É comum afirmar que o ethos da compaixão crística – que resulta do padrão desenhado pelo texto de Marcos – não tem sentido quando transposto da relação puramente humana entre um eu e um tu para a dimensão cívica. Não é possível alguém funcionar numa sociedade agindo de tal modo e o próprio poder político, enquanto monopólio da violência legítima, não pode ter a misericórdia como núcleo central da sua acção. O curioso de texto é que a natureza da justiça divina é estabelecida por analogia com a justiça de um rei.

A parábola é antecedida por um diálogo entre Pedro e Jesus, onde este explica que a misericórdia para com o outro deve ser infinita. Contudo, a parábola introduz uma limitação nesse infinito. O rei perdoa a primeira ofensa, a da dívida. Não perdoa, porém, uma segunda ofensa, agora feita a terceiros. A falta de misericórdia do devedor perdoado e o consequente castigo imposto pelo rei tornam evidentes os limites do uso da misericórdia na vida pública. Isto não significa, porém, que a misericórdia deva ser banida da cidade e das relações cívicas. Significa antes que ela deve ser um horizonte regulador da vida entre os homens e que as próprias instituições devem agir tendo por pano de fundo essa misericórdia.

Na aplicação da lei, na execução da pena, sob o véu da reposição da paz pública pelo exercício da violência legítima deve-se poder encontrar a misericórdia como ideia reguladora da acção. Isso não significa abolir as penas, mas usá-las de forma a que a qualidade de pessoa não seja negada ao culpado. E aqui manifesta-se já a misericórdia, pois o culpado é sempre culpado de ter, de alguma forma, negado a natureza de pessoa à vítima. É a humanização da lei civil aquilo que as sociedades ocidentais devem ao ethos da compaixão crística. Não é pouco.

3 comentários:

  1. Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso.» «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco.» (Lucas 6,36-38)

    A parábola do Rei e do Servo pode ser um pau de dois bicos: a parábola introduz uma limitação à misericórdia infinita para com o outro. O rei perdoa a primeira ofensa, a da dívida, mas não perdoa, porém, uma segunda ofensa, agora feita a terceiros.
    A mesma medida pode ser-lhe aplicada no futuro, ao Rei.

    Com quanta infinidade deve-se ser misericordioso? É possivel colocar um limite na misericordia infinita? Não contraria a passagem acima?

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  2. O texto é claramente paradoxal, como muito bem nota. Entre a primeira perspectiva (a do 70X7) de uma misericórdia infinita exigida ao homem finito e o limite da infinita misericóridia divina para com os não misericordiosos há uma contradição, pelo menos aparente. Essa era uma linha de comentário possível e que cheguei a considerar, acabando por optar pela leitura que se "postou", mais centrada na relação entre rei e servo, isto é, no analogante da analogia. Do ponto de vista lógico e argumentativo o caso talvez não tenha solução. Como outros textos evangélicos, também este faz-me lembrar os paradoxos dos koan do budismo Zen, cuja função é mesmo a de ultrapassar pela meditação a dimensão meramente discursiva. Talvez este choque no "logos apofântico" seja apenas resolúvel praticamente. Ou então mereceria uma longa meditação sobre a função da analogia neste tipo de discurso, pois o limite que se encontra na misericórdia divina é manifestado pela analogia, onde Deus é analogado a um homem, o rei com a sua misericórdia limitada. Ora uma meditação sobre a analogia talvez excedesse em muito a pretensão dos textos que se vão escrevendo, bem como exigiria um tempo que não se dispõe.

    Muito obrigado pelo comentário.

    HV

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  3. O Rei só condena o servo por este não ter seguido a Lei do Perdão, não o tendo condenado por ter dívidas para com o seu amo, o Rei. É pela atitude para com o Outro que é condenado, não pela dívida, que lhe foi perdoada. Ou seja, é um texto sublime sobre o Perdão como elemento salvador e redentor da condição humana...

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