sexta-feira, 22 de março de 2013

Uma questão de identidade

James Ensor - Ecce Homo

Naquele tempo, os judeus voltaram a pegar em pedras para apedrejarem Jesus. Jesus replicou-lhes: «Mostrei-vos muitas obras boas da parte do Pai; por qual dessas obras me quereis apedrejar?» Responderam-lhe os judeus: «Não te queremos apedrejar por qualquer obra boa, mas por uma blasfémia: é que Tu, sendo um homem, a ti próprio te fazes Deus.» Jesus respondeu-lhes: «Não está escrito na vossa Lei: 'Eu disse: vós sois deuses'? Se ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus e a Escritura não se pode pôr em dúvida a mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, como é que dizeis: 'Tu blasfemas', por Eu ter dito: 'Sou Filho de Deus'? Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; mas se as faço, embora não queirais acreditar em mim, acreditai nas obras, e assim vireis a saber e ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai.» Por isso procuravam de novo prendê-lo, mas Ele escapou-se-lhes das mãos. Depois, Jesus voltou a retirar-se para a margem de além-Jordão, para o lugar onde ao princípio João tinha estado a baptizar, e ali se demorou. Muitos vieram ter com Ele e comentavam: «Realmente João não realizou nenhum sinal milagroso, mas tudo quanto disse deste homem era verdade.» E muitos ali creram nele. (João 10,31-42) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

O texto de João começa com a exposição de um conflito em torno da identidade de Jesus. Para os judeus, Cristo blasfemava pois, sendo homem, fazia-se a si mesmo Deus. Quem era Ele? Um homem ou Deus? Surpreendentemente, a questão sobre a identidade de Jesus é transformada por Este na questão da identidade do homem, de qualquer homem. A opacidade da figura de Cristo surge assim como continuação da obscuridade que cada um é para si mesmo. Não é apenas Cristo que é um mistério para o homem, é o próprio homem que é mistério para si mesmo.

Como compreender a fúria daqueles que pegavam em pedras? De certa forma, a figura de Jesus Cristo funciona como um espelho. Ao verem-se nesses espelho, os homens não gostam do que vêem. A imagem de si-mesmos que lhes é devolvida está longe de lhes agradar. Observam-se numa figura onde sobressai uma mutilação e uma feiura que não podem, por orgulho, suportar. É como se a presença de Cristo lhes dissesse: vós sois deuses, como está na Lei, mas transformastes-vos em meros apedrejadores, pois já não sabeis quem sois nem qual o vosso caminho.

A solidariedade entre o mistério da identidade de Cristo e o mistério da identidade do homem tem como corolário a ideia de que a descoberta de Cristo é, para cada homem, uma viagem para si mesmo, uma descoberta de si e da sua própria verdade. Que isto indigne a razão torna-se evidente pelo facto de que nem as obras visíveis – essas provas materializadas de uma identidade que ultrapassa a mera consideração de um eu empírico – são o suficiente para acalmar os homens. A natureza do Cristo, a sua identidade, é um escândalo para a razão presa à abstracção lógica e limitada à informação empírica. Esse escândalo, contudo, não é diferente daquele que reside na identidade e natureza de cada homem. É esse escândalo que, através de Cristo, somos solicitados a aceitar e é esse mesmo que mais tememos em aceitar. Por isso, não faltam pedras nas mão.

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