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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, 
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; 
assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Não por acaso, o vento - ou o sopro - é tomado como símbolo da vida espiritual. João diz-nos que nada sabemos daqueles que nascem do espírito. Não sabemos nem a sua origem nem o seu destino. Estão subtraídos à dinâmica da história, como se estivessem acima e para além dela. O vento como símbolo do espírito e da vida espiritual diz-nos ainda outra coisa. O vento suave pode refrescar e tornar a existência aprazível, mas o vendaval tem o poder de destruir. É um equívoco olhar para a vida espiritual como um mero exercício de consolação. Ela é também, e muitas  vezes, a violência que destrói os edifícios anquilosados onde tomou forma e que já não contêm a sua infinita ânsia de liberdade.

terça-feira, 9 de abril de 2013

O espírito e a história

Maurice Denis - Paradise (1912)

Na sequência de um post anterior, O horror da história, retorna-se à questão da história e ao seu cruzamento com experiência espiritual da humanidade. Os tempos modernos substituíram a ideia de um progresso histórico, de carácter providencial, em direcção à Parusia, a segundo vinda do Cristo, e ao Juízo Final por uma história puramente profana vista como progresso material e moral da humanidade. Em Kant, a humanidade europeia encontrou o seu pensador do progresso moral e no Conde de Saint-Simon descobriu o seu profeta da técnica. A religião cristã, já dividida pela Reforma protestante, vai deixar de ocupar a preeminência que tivera no espaço público e tornar-se um assunto do foro subjectivo dos indivíduos, agora cada vez mais atomizados. Esta subjectivação do espírito do cristianismo teve uma dupla consequência. A perda de uma compreensão global do sentido da espiritualidade, em primeiro lugar. Depois, e como corolário, a transformação da religião em mera moralidade e ritualismo, ou a sua negação, nas formas da indiferença, do agnosticismo e do ateísmo, muitas vezes organizado de forma militante e, nos últimos tempos, adquirindo uma espécie de tonalidade religiosa invertida.

A experiência da humanidade europeia, e por arrastamento da humanidade em geral, do século XX veio tornar patente os limites na crença do progresso moral da humanidade. A perda de vitalidade espiritual ocorrida nos séculos XVIII e XIX abriu as portas para as terríveis experiências totalitárias do século XX e para duas guerras mundiais. A grande experiência que a humanidade europeia, e com ela, mais uma vez, toda a humanidade, começa a fazer neste início do século XXI - uma experiência que talvez tenha começado no outro lado do Atlântico - é que as esperanças depositadas no progresso técnico-científico se estão a mostrar infundadas. O desenvolvimento do conhecimento científico e as revoluções tecnológicas, apesar dos benefícios que trazem com elas, são fontes indescritíveis de dor e de desespero. No cerne das nossas sociedades, a racionalidade tecnocientífica mostra-se impotente para gerar sociedades equilibradas e de bem-estar. Pelo contrário, apesar de alguns momentos onde as sociedades parecem querer encontrar uma forma justa de distribuição dos bens resultantes da ciência e da indústria humanas, logo se sucedem períodos de graves crises, onde o desespero cresce e a injustiça alastra. O paraíso terrestre que a modernidade, sob a ideia de progresso moral e material, prometera aos homens mostra-se, a maioria das vezes, como um verdadeiro inferno para milhões e milhões de pessoas.

Estas constatações não invalidam a bondade de uma educação virada para o progresso da moralidade nem o valor da ciência e da técnica. Mostram apenas os seus limites, os quais são muito mais profundos do que aquilo que o optimismo séculos XVIII e XIX pensou. A dolorosa descoberta que se está a fazer é que a evacuação da religião, e fundamentalmente da espiritualidade cristã, do espaço público, o seu exílio no foro subjectivo, aniquilou um espaço crítico das ilusões mundanas do homem. Destruiu também uma fonte de inspiração para a procura da verdade e do bem. As sociedades ocidentais, e por arrastamento parte das outras, passaram por um momento onde eram animadas por forças meramente mecânicas, que tiveram a sua expressão máxima nas sociedades fordistas e tayloristas do século XX, para chegarem a sociedade caóticas, onde cresce a fragilidade da generalidade das pessoas, ao mesmo tempo que pequenos grupos as submetem ao seu arbítrio e à tirania dos seus desejos, apresentados como interesses legalmente defendidos. É neste caos, já bem visível na Europa do Sul mas que em breve atingirá o centro e o norte, que se deve recolocar a questão da religião e da espiritualidade, como as forças vivas que poderão trazer um novo princípio ordenador às existências individuais e à vida das sociedades. Não uma praxis religiosa vinda da Idade Média ou dos tempos da moderna Inquisição, mas um reinvenção do cristianismo eterno e da eterna busca espiritual da humanidade. É preciso um espaço extra-mundano para olhar criticamente o mundo e as nossas ilusões sobre ele, para descobrirmos modos de vida alternativos ao caos em que nos estamos a precipitar.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Uma estranha presença

Jean de Beaumetz - The Cruxifixion with a Carthusian Monk (1389-1395)

Esta intromissão anacrónica de um monge cartuxo na crucificação de Cristo não é um devaneio artístico nem, tão pouco, um acto arrebatado de fé, mas uma meditação sobre a natureza dos acontecimentos religiosos. O que Jean de Baumetz faz é abolir a história, dissolver o tempo. Mas não pretende negar nem história nem tempo, mas tornar evidente que o acontecimento histórico e temporal da morte de Cristo não pertence à história, mas à eternidade. A morte do Cristo, bem como o seu nascimento e a sua ressurreição, por serem eternos, podem acontecer a cada instante do tempo. O monge cartuxo representa cada um de nós contemplando esse acontecimento central na história da humanidade ocidental. Central, porque não pertence a essa história, e por não lhe pertencer move-a, organiza-a, prescreve-lhe, no silêncio da eternidade, o seu secreto fim. A estranha presença não é a do monge perante o Cristo crucificado, mas a presença de Cristo perante cada um de nós, aqui e agora.