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segunda-feira, 18 de março de 2013

O não julgamento

William Turner - Light and Color - The Morning After the Deluge (1843)

Naquele tempo, disse Jesus aos judeus: «Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida.» Disseram-lhe, então, os fariseus: «Tu dás testemunho a favor de ti mesmo: o teu testemunho não é válido.» Jesus respondeu-lhes: «Ainda que Eu dê testemunho a favor de mim próprio, o meu testemunho é válido, porque sei donde vim e para onde vou. Vós é que não sabeis donde venho nem para onde vou. Vós julgais segundo critérios humanos; Eu não julgo ninguém. Mas, mesmo que Eu julgue, o meu julgamento é verdadeiro, porque não estou só, mas Eu e o Pai que me enviou. Na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é válido; sou Eu a dar testemunho a favor de mim, e também dá testemunho a meu favor o Pai que me enviou.» Perguntaram-lhe, então: «Onde está o teu Pai?» Jesus respondeu: «Não me conheceis a mim, nem ao meu Pai. Se me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai.» Jesus pronunciou estas palavras junto das caixas das ofertas, quando estava a ensinar no templo. E ninguém o prendeu, porque ainda não tinha chegado a sua hora. (João 8,12-20) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

Eu não julgo ninguém. Esta espantosa frase surge em oposição ao juízo dos homens. Estes julgam segundo critérios humanos. O que significa isso? Significa que esses critérios são limitados, finitos e falíveis. Em oposição a estes critérios, abrem-se duas perspectivas judicativas que devem ser tomadas em consideração. Por um lado, a existência de critérios não humanos, aqueles segundo os quais Cristo e o Pai julgam. Esses critérios aparentemente não surgem no texto. Há contudo fortes indícios para esses critérios. Por outro, a ideia de que Cristo não é um juiz. Estamos perante um aporia que deixa o pensamento perplexo e desafia o homem a meditá-la.

O juízo divino é um não juízo. O julgamento é ainda uma categoria humana, demasiado humana. Talvez a chave se encontre na sentença que, de certa maneira, é complemento da sentença Eu não julgo ninguém. Este Eu não julgo ninguém deve ser lido conjuntamente com as primeiras palavras de Cristo Eu sou a luz do mundo. A luz ilumina, dá a ver, revela. E essa revelação tem o efeito mostrar o que cada um é, de discernir aquilo que as trevas ocultam. E aquilo que é um não juízo, o que é uma pura Luz, torna-se um princípio de discriminação e de separação segundo o coração de cada um, ou como o texto deixa entender entre aqueles que O seguem e estão na Luz e os que não O seguem e estão nas trevas, no domínio da obscuridade e da errância.

O conceito de errância, muitas vezes usado nestes comentários, recebe uma nova precisão. Significa não conhecer o Cristo e, ao desconhecê-lo, desconhecer a Deus, o totalmente Outro, pois o conhecimento do divino, para o homem, reside no conhecimento de Cristo. Este é a face de Deus que o homem consegue suportar, é a luz que o mundo consegue tolerar, mas é também o totalmente Outro que reside no íntimo de cada um, sendo ao mesmo tempo aquilo que é real e efectivo, apesar da sua radical alteridade, em cada ser humano. Andar nas trevas é quebrar a ligação com esse Outro que é nós mesmos, é entregar-se à sentença do não julgamento.

terça-feira, 5 de março de 2013

A lei e a misericórdia

Caravaggio - Siete obras de misericordia (1607)

Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?» Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino do Céu é comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Logo ao princípio, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo com que pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os seus bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se, então, aos seus pés, dizendo: 'Concede-me um prazo e tudo te pagarei.’ Levado pela compaixão, o senhor daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o, apertou-lhe o pescoço e sufocava-o, dizendo: 'Paga o que me deves!’ O seu companheiro caiu a seus pés, suplicando: 'Concede-me um prazo que eu te pagarei.’ Mas ele não concordou e mandou-o prender, até que pagasse tudo quanto lhe devia. Ao verem o que tinha acontecido, os outros companheiros, contristados, foram contá-lo ao seu senhor. O senhor mandou-o, então, chamar e disse-lhe: 'Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque assim mo suplicaste; não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?’ E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos até que pagasse tudo o que devia. Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração.» (Mateus 18,21-35) [Comentário de Cesário de Arles aqui]

O texto trata da natureza da justiça e da misericórdia divinas e estabelece um padrão de comportamento para as relações humanas. É comum afirmar que o ethos da compaixão crística – que resulta do padrão desenhado pelo texto de Marcos – não tem sentido quando transposto da relação puramente humana entre um eu e um tu para a dimensão cívica. Não é possível alguém funcionar numa sociedade agindo de tal modo e o próprio poder político, enquanto monopólio da violência legítima, não pode ter a misericórdia como núcleo central da sua acção. O curioso de texto é que a natureza da justiça divina é estabelecida por analogia com a justiça de um rei.

A parábola é antecedida por um diálogo entre Pedro e Jesus, onde este explica que a misericórdia para com o outro deve ser infinita. Contudo, a parábola introduz uma limitação nesse infinito. O rei perdoa a primeira ofensa, a da dívida. Não perdoa, porém, uma segunda ofensa, agora feita a terceiros. A falta de misericórdia do devedor perdoado e o consequente castigo imposto pelo rei tornam evidentes os limites do uso da misericórdia na vida pública. Isto não significa, porém, que a misericórdia deva ser banida da cidade e das relações cívicas. Significa antes que ela deve ser um horizonte regulador da vida entre os homens e que as próprias instituições devem agir tendo por pano de fundo essa misericórdia.

Na aplicação da lei, na execução da pena, sob o véu da reposição da paz pública pelo exercício da violência legítima deve-se poder encontrar a misericórdia como ideia reguladora da acção. Isso não significa abolir as penas, mas usá-las de forma a que a qualidade de pessoa não seja negada ao culpado. E aqui manifesta-se já a misericórdia, pois o culpado é sempre culpado de ter, de alguma forma, negado a natureza de pessoa à vítima. É a humanização da lei civil aquilo que as sociedades ocidentais devem ao ethos da compaixão crística. Não é pouco.