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sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

terça-feira, 1 de março de 2016

Memória e identidade

Fernand Khnopff - Memórias (1889)

A memória, na tradição platónica, tem um papel central na vida espiritual. O que se joga nesta é uma reminiscência a activar sobre sobre o mundo verdadeiro que, antes de entrar no corpo, a alma teria contemplado. Esta relevância da memória faz-se sobre um processo de aniquilação das memórias sensíveis que a vida quotidiana deixa em nós. As memórias temporais são um obstáculo à vida do espírito, como a história do destino da mulher de Lot ensina numa outra tradição. Esta destruição da memória sensível significa, porém, um desfazer da identidade construída, como se a vida espiritual não fosse mais do que um caminho entre essa identidade construída e uma enigmática identidade originária recebida.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desintegração da memória

Salvador Dali - Desintegración de la persistencia de la memoria (1952-54)

A memória é a persistência do passado, a composição de indícios que acabam por vincular os homens a uma identidade a um ego. A memória é o fundamento desse ego e daquilo que deriva dele. A vida do espírito nasce da desintegração da memória, que não é outra coisa senão o quebrar da ilusão do ego.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A memória da errância

JCM - Time on space (2007)

O tempo que se inscreve na pele, abrindo sulcos na planície do corpo, é um sinal - quase diria, uma memória - da errância que constitui parte substancial da viagem. Muitas vezes a luz que ilumina o espírito ausenta-se, coberta por uma nuvem. Então, o viandante perde-se no caminho, avança e recua, traça linhas sinuosas que não levam a lado nenhum. E tudo isso se inscreve nesse inusitado mapa que é a pele. Mais do que as vitórias, são os enganos, as ilusões e as derrotas que nos sulcam o corpo.

domingo, 25 de maio de 2014

Ruínas e memória

Lucien Clergue - Ruines, Arles (1954)

Mais que o memorial ou o monumento conservado, as ruínas representam uma espécie de fidelidade mnésica. A memória, na sua faceta restauradora ou comemorativa, tende a idealizar o passado, a despi-lo do tempo. mentindo assim sobre a nossa condição passageira. As ruínas, porém, mostram-nos o passado e o presente, evidenciam o trabalho do tempo. Recordam-nos vivamente que somos pó e ao pó voltaremos.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O paraíso perdido

Charles Marville - Stream of Armenonville, Bois de Boulogne (1858-60)

Talvez todos os seres humanos tragam dentro de si uma secreta imagem do paraíso perdido, desse lugar ameno de onde teria sido excluído todo o conflito. Sempre que podem, tentam reproduzi-lo na terra, imaginando lugares onde os homens se possam recolher na natureza e esquecer a dura vida a que estão condenados. Estar num lugar desses é sempre um exercício de rememoração, um activar de uma memória de algo que não vivemos mas que trazemos dentro de nós. Uma memória projectiva.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre a memória

Sendo - Da memória (1995)

É possível que possamos simbolizar a memória pela ruína. O que resta da vida vivida é essa ruína a que damos o nome de memória. É com Platão que surge a referência a uma outra memória, aquela que a alma teria da contemplação das Ideias, essas realidades que estão para além da vida vivida, seja no plano biológico, seja no plano social. É a memória de algo que a experiência existencial não poderia nunca pôr à nossa disposição, de algo que a própria vida representa já uma ruína e uma degradação. A partir desta concepção, pode-se pensar a memória já não como uma faculdade passiva e impotente perante a vida, mera produtora de imagens da ruína do real, mas como uma faculdade activa que, entre as ruínas da vida, nos abre para o essencial, para o que é efectivamente real.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Estátuas de Sal

Raquel Forner - Mulher de Lot (1935)

Um dos episódios mais estranhos do Antigo Testamento é o da transformação da mulher de Lot em estátua de sal. A fuga da família de Lot, aquando do castigo de Sodoma e Gomorra, tinha como condição não olharem para trás. Esta estranha condição não é diferente da que foi imposta a Orfeu na sua tentativa de libertação de Eurídice do reino da morte. Não olhar para trás, não procurar a certificação do caminho com uma visão retrospectiva. Poder-se-ia ver nesta história da mulher de Lot ou no mito de Orfeu uma certa atenção ao futuro. Isso, porém, seria falhar o essencial. O castigo de Orfeu ou da mulher de Lot deve-se à incapacidade de estarem presentes, de se moverem aqui e agora, de se deixarem seduzir pelo que fica para trás ou pela necessidade de uma certeza. Em ambos os casos, o que está em jogo é o desejo, o desejo de uma certeza, mas também o desejo de algo que passou, e cuja memória, certificada pelo olhar retrospectivo, petrifica o espírito e o transforma numa estátua de sal.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Memória e presença

Paul Klee - Alfombra del recuerdo (1910)

As experiências místicas, esses momentos em que Deus se manifesta na intimidade de um ser humano, serão exercícios de memória. Aprendemos, sob a direcção do senso comum, que a memória está relacionada com o passado. Talvez haja aqui alguma precipitação. A memória é uma faculdade que tem por objectivo tornar presente ao espírito alguma coisa. E não se pode tonar presente nada que tenha já passado. Quando recordo o passeio que, há dias, dei à beira-mar, não trago de volta esse acontecimento irrepetível. O que torno presente são alguns traços que subsistem em mim, isto é, torno presente aquilo que está já presente, mas oculto de alguma forma. Quando leio autores espirituais ou místicos tenho sempre a sensação de que as suas experiências são fundadas na memória. Não de uma memória que resulta de algo que se passou no passado, mas de uma memória que manifesta uma pura presença oculta. Deo Abscondito. Seja qual for a tradição espiritual e sejam quais forem as técnicas utilizadas, é sempre uma presentificação do que está sempre presente que está em jogo. 

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Escrevo da desolação

Escrevo do sítio da desolação, não da desolação do corpo ou da alma, mas da desolação do espírito perdido num deserto tão cheio de gente. Sento-me e observo e espero que venha a mim aquilo que terá de vir. Mas tudo me dispersa e me envia para o excesso. Febril, oiço as vozes que cantam a Primavera, que teima em não partir. Para que quererás tu, pobre viandante, o calor do Verão? Não sabes o que sofres quando a temperatura cresce e a sombra, como num prolongado meio-dia, desaparece? Ainda agora, passados todos estes anos, nada sabes. Ficas a rememorar passados, a contar futuros que nunca virão, a perderes-te desse súbito presente que, mal irrompe, a sombra o traga. Escrevo da desolação desse meu espírito tão incapaz de olhar o que há para ver.