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sábado, 11 de julho de 2015

Cegos conduzem cegos

Pieter Brueghel el Viejo - The Parable of the Blind Leading the Blind (1568)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mat. 15:14)

A ideia de cegos a conduzirem outros cegos emerge num debate sobre o respeito pela tradição. Os fariseus parecem muito preocupados pela letra da lei e pelo cumprimento literal dessa mesma lei. O que Cristo torna patente, através do confronto entre os lábios (uma metonímia para discurso) e o coração, é o problema constitutivo de todo o logos humano, o de as palavras poderem estar radicalmente separadas das coisas. Cegos - sejam condutores ou conduzidos - são aqueles que falam, que dirigem, que executam mas que perderam o sentido essencial da palavra e da acção. São eles que se entregaram à errância. E quanto mais perdidos mais ferozes são na exigência da literalidade. Na verdade, a tradição, tomada assim, é uma traição ao espírito e um exercício do mal, como a história da humanidade nunca deixa de mostrar. A tradição, num outro e mais decisivo sentido, não é outra coisa se não a atenção ao coração, ao essencial, ao que está para além do discurso, do Verbo que está para além da palavra.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Verbo e o Jardim

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Um jardim não é apenas um lugar onde se cultivam plantas ornamentais ou um sítio dado à fruição humana pelos poderes públicos ou pelos haveres privados. É uma imagem que materializa no espaço e no tempo a nostalgia que já se exprimia na narrativa mítica do jardim do Éden, no Génesis bíblico. Do ponto de vista da ordem da existência em geral, podemos dizer que no princípio era o Verbo, mas do ponto de vista estritamente humano, contudo, será mais prudente dizer que no princípio era um Jardim. O  viandante perplexo, porém, pergunta se o Verbo e o Jardim não serão a mesma e única coisa.

sábado, 27 de abril de 2013

O silêncio e o nada

Odilon Redon - O silêncio

O silêncio não diz nada (rien), talvez porque é o nada (néant) que «diz» o silêncio. Compreendo que o nada (néant) é silencioso e que apenas podemos perceber o nada (néant) no silêncio. (Raimon Panikar, Mystique plénitude de Vie, p. 162

Há no mundo de hoje uma enorme poluição sonora. Não há lugar algum para onde possamos ir sem que o ruído nos invade. O pior, porém, são as palavras que nunca se calam dentro de nós. Esta poluição é o sintoma de um medo profundamente enraizado. Medo de quê? Medo de enfrentar esse nada que fala no silêncio, medo de se abrir para ele, medo de nos esvaziarmos para que ele seja nada em nós. O silêncio é a abertura para além do domínio das imagens sonoras, para além da multiplicidade das línguas e da pluralidade das palavras. No silêncio, escutamos, vazios, o Logos, esse nada anterior a todos os seres, esse verbo anterior a todos os sons. E isso aterroriza-nos, como o silêncio dos espaços infinitos já aterrorizava Pascal.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Verdade e libertação

Lecomte du Noüy - White slave (1888)

Naquele tempo, dizia Jesus aos judeus que n'Ele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.» Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres. Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque não aderis à minha palavra. Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes ao vosso pai.» Eles replicaram-lhe: «O nosso pai é Abraão!» Jesus disse-lhes: «Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão! Vós fazeis as obras do vosso pai.» Eles disseram-lhe, então: «Nós não nascemos da prostituição. Temos um só Pai, que é Deus.» Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse vosso Pai, ter-me-íeis amor, pois é de Deus que Eu saí e vim. Não vim de mim próprio, mas foi Ele que me enviou. (João 8,31-42) [Comentário do Concílio Vaticano II aqui]

O texto de hoje gira em torno do tema da libertação. É grande a perplexidade dos judeus ao escutarem a ideia de libertação, pois eles nunca foram escravos, como poderão ser libertos? Esta reacção denota que a questão da libertação ultrapassa o par antitético escravo – homem livre. Tão servos podem ser os escravos como os homens livres. Aquilo que emerge no texto está antes – no sentido de ser mais essencial – da mera categorização social e política. O que nos ensina João?

Surpreendentemente, ensina-nos que a liberdade é uma questão de aprendizagem, que ela implica um processo – um processo de libertação – e, sendo assim, ela, a liberdade, não é um dado natural do homem. Essa aprendizagem está indicada na primeira fala de Cristo, que a tradução acomoda de tal forma a uma visão banal que se perde a originalidade do texto grego. Ele poderia ser traduzido antes assim: se permanecerdes (ou persistires) na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos. A relação ao logos (palavra ou verbo, de preferência a mensagem) não é de uma mera adesão do espírito, não é uma fidelidade de crença, mas antes um permanecer na palavra. Na fidelidade ou na crença, a relação do fiel ou do crente em relação ao objecto da sua crença ainda é marcada pela exterioridade. O texto de João propõe outra coisa, propõe um estar em (estar no logos), um ser em. Creio, pois estabeleci-me e persisti no logos.

A aprendizagem, o discipulato, é essa persistência no logos. Ao viver no logos (na palavra), conheço a verdade. A verdade, porém, não é o mero acordo entre uma proposição e a realidade. A palavra grega utilizada no texto (ἀλήθεια) remete para a ideia daquilo que se desoculta, que se revela. E é isso que se desoculta pela persistência no logos (na palavra ou no verbo) que liberta o homem. Não menos misteriosa, porém, é a palavra grega (ἐλευθερώσει) utilizada para a ideia de libertação. Ela remete para ἐλεύθερος que significa livre e livrado (ou libertado) de uma obrigação, i. e., desobrigado.

Todo o diálogo com os judeus está marcado por uma incompreensão essencial. Estes falam da sua natureza e julgam-se livres segundo a natureza, pois nunca foram, social ou politicamente, escravos. Mas o que Jesus lhes diz é que essa natureza representa uma obrigação que os torna servos, que os obriga à servidão. É uma natureza que, em última análise, se pode dizer desnaturada. Só a verdade liberta. Mas a verdade não é da dimensão do discurso mas da vida vivida na palavra (logos), de uma vida que permite desocultar uma outra natureza, desocultação que liberta e desobriga o homem da servidão a essa natureza desnaturada. O pecado, mesmo entendido como errância, não é outra coisa senão a servidão, enquanto a aprendizagem pela permanência no logos é desocultação daquilo que nos desobriga e, desse modo, nos retira da servidão e torna livres.