sábado, 10 de fevereiro de 2018

Haikai urbano (31)

Erich Lessing, Budapest, 1956

Um rumor de música
na rua roída de miséria.
A cidade morre.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

A minha mulher

Hannah Höch, Self portrait with Raoul Hausman, ca. 1919


Conheceu a minha mulher. Lembra-se, por certo, da sua figura e da sua maneira de ser misteriosa. Como ela adquiriu os papéis de identidade, nunca o soube. Quando casámos, estava tudo na mais perfeita ordem. O problema é que ela não tinha pai, nem mãe, tão pouco nasceu ou teve uma infância. Um dia, ao crepúsculo, senti uma leve tontura. Não cheguei a cair, mas de dentro de mim começou a sair uma sombra. Não tive medo. O processo não foi demorado. Quando a noite caiu ouvi uma voz, uma bela voz. Tremi. Vinha da sombra, agora um vulto, e tocou-me o coração como nenhuma outra. Quando acendi a luz, o vulto era uma mulher. Olhei-a no fundo dos olhos e soube de imediato que seria a minha mulher.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Poemas do Viandante (670)

Joan Hernández Pijoan - Flors per als campions (1990)

670. os vencedores vestem-se

os vencedores vestem-se
de flores
restos de natureza
na nudez
vocálica da voz
uma sombra triste
no regaço breve
e vítreo
tão vítreo no v da vitória

(18/12/2016)

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Meditação breve (63) Imperfeição

Manuel Álvarez Bravo, Ventana al coro, Mexico, 1930s

A coisa mais surpreendente, e também a mais preciosa, nas obras humanas é a sua imperfeição. Esta é a porta por onde entra aquele que procura ir mais além. A imperfeição incita-nos e abre-nos ao que nos ultrapassa. A perfeição apenas apela àquelas terríveis palavras de Cristo na cruz, após as quais entregou o espírito: Está consumado.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Meditação breve (62) Refúgio

Myron Wood, Boy and Sculpture, 1960

A criança sentada numa escultura antropomórfica de Henry Moore encontrou ali o seu refúgio. Não porque as estátuas mimassem figuras humanas, mas porque, ao distorcê-las, se tornassem mais humanas que os próprios seres humanos.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (349)

Max Baur, Park Sanssouci, Potsdam, 1930

Ciprestes tardios
erguem-se leves aos céus.
Sombras e murmúrios.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Poemas do Viandante (669)

Gonzalo Torné - El mundo de Ceballos (1994)

669. mundo mapa mudo

mundo mapa mudo
de anémonas
                tisnado
no sol marítimo
                carcomido
pelo passar da barca
sujo       ó tão sujo
pelo açúcar
                a florir
na erva das encostas

(18/12/2016)

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Biografias 3. Mulher hesitante

Walde Huth - Model Patricia in Jaques Fath, Paris, France, 1955

Parada e pensativa, a mulher, inábil nas artes da tecelagem, hesita. Voltar para trás ou entregar-se ao murmúrio sombrio do desejo dos pretendentes?

domingo, 28 de janeiro de 2018

Haikai do Viandante (348)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Uma ave cantou
no frio silêncio da neve.
Manhã de Inverno.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A vida que se retira

Arthur Tress - Cards and Checkerboard in Abandoned Locker Room for Railroad Workers c. 1970

Os espaços que perderam o préstimo e ficaram entregues à ruína têm sempre o condão de abrir no coração do espectador a chaga da nostalgia. Uma chaga suave mas irremissível. Um tabuleiro de xadrez, o resto de um baralho de cartas não são, porém e apesar da degradação trazida pelo tempo, mero lixo, antes símbolos de uma vida que se retirou. Não a vida física e material mas a vida do espírito. Olhamos e quase se sente o ambiente espiritual que animava quem se servia daquelas instalações, aqueles que jogavam às cartas ou os que se mediam no xadrez. A ruína que os olhos vêem é o que restou dos pensamentos, palavras e desejos que ali ecoaram e que agora são silêncio e fragmentos materiais a deslizar para fora do tempo.