terça-feira, 13 de março de 2018

Haikai urbano (33)

Gisèle Freund, Sur les quais, Paris, 1956

Sobre o cais, a neve
fria desliza no inverno
do teu coração.

segunda-feira, 12 de março de 2018

O amante excessivo

Cecil Beaton, Fashion Model, 1950s

Há amores que são excessivos. Foi assim que ele começou a conversa. A princípio fiquei atónito, pois não esperava uma confissão, mas logo me recompus. Contou-me como tinha conhecido a mulher, a paixão que dele se apoderou. Não escondeu sequer alguns episódios picarescos, embora nunca tenha exposto a intimidade desse amor. Descreveu o casamento durante horas. A passagem dos anos não saciou a paixão, confessou-me. A dela, não sei. O que ele me contou foi que, um dia, a mulher lhe disse: o teu amor é excessivo para mim. Nesse instante, alimentada pela obsessão dele, ela começou a desdobrar-se. Primeiro, uma sombra, depois um vulto, por fim outra mulher exactamente igual a ela. Hoje, não sem felicidade, vivem os três.

domingo, 11 de março de 2018

Poemas do Viandante (676)

Ana Peters - Revoloteo Voleteig (1997)

676. pássaros palpitam

pássaros palpitam
e volteiam
brancos e brandos
em céu de fúcsia
suspensos
na luz da cerejeira
num trinado
de púrpura
quase roxo
                quase puro
                               quase quase

(19/12/2016)

sábado, 10 de março de 2018

Biografias 9. O amola-tesouras

Ruth Matilda Anderson, Scissors grinder, 1926

Tornar agudo e cortante aquilo que ficou rombo. Não há profissão mais necessária à vida espiritual que a de amolador. Quando rombo, o espírito divaga na errância incapaz de separar o trigo do joio, a verdade da falsificação. De terra em terra, o amola-tesouras era um portador de esperança e de uma promessa de verdade.

sexta-feira, 9 de março de 2018

A ponte

Toni Schneiders, Fykesunds bru im Hardanger Fjord, 1959

Ninguém sabe quem construiu a ponte. Diz-se que nos inícios dos anos cinquenta do século passado, de um dia para o outro, a ponte apareceu ali. Os relatos são coincidentes e os jornais da época registaram o fenómeno. Pouca gente morava então nesta zona, mas o terror foi grande, como pode imaginar. Do lado de lá, não há notícia que tenha vindo alguém e aqueles que do lado de cá se aventuraram nas trevas da outra margem nunca voltaram. O que está no fim da ponte ninguém sabe. A escuridão parece eterna. Desde que a ponte apareceu ali - ia a dizer foi construída - nunca o dia sucedeu à noite. E isto é tudo o que sei.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Haikai urbano (32)

Alfred Stieglitz, Reflections, Night–New York, 1897

Reflexos na noite,
suaves sombras de seda.
Árvores e luz.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Poemas do Viandante (675)

Antonio Tápies - Grand triangle marron (1963)

675. o triste triângulo marron

o triste triângulo marron
amadurece
entre castanheiros
desenha um símbolo cego
e surdo
o sabre com que
recorto o
bater das folhas
na penúria dos ramos

(19/12/2016)

terça-feira, 6 de março de 2018

Meditação breve (70) Massa

Sebastião Salgado, Church gate station, 1995

Basta olhar para esse aglomerados de seres humanos que justificam o nome de massa para nos tornarmos cépticos sobre se a nossa espécie será tão plástica quanto pensa. A plasticidade nasce da vida do espírito e este só se manifesta no indivíduo. Silêncio e solidão são a pátria do espírito, mas a massa é a casa do homem.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Biografias 8. A mulher que perdeu a face

Raoul Hausmann, Le Portrait corrigé, 1946-1947

Possuir uma face é um trabalho secreto e minucioso, um exercício de atenção ao pormenor, a construção daquilo que faz alguém irromper no olhar dos outros. A mulher que perdeu a face, perdeu-a porque nunca a teve. Faltou-lhe a atenção, o esforço e, acima de tudo, a minúcia.

domingo, 4 de março de 2018

Meditação breve (69) Premonições

Gaston Xhardez, La fenêtre volante. Prémonition à un monde futur, ca 1957-1958

Nada pior, no domínio do espírito, do que o exercício da premonição. Não é apenas porque as actividades espirituais não são um exercício de pressentimento do futuro, mas também porque o futuro nunca se ajusta aos desejos de quem se presta  a exercícios premonitórios. Não há nada mais terreno e estranho a viagens no tempo do que a vida espiritual.