quarta-feira, 28 de março de 2018

Meditação breve (75) Rebelião

Arnold Genthe, Isadorable, 1921

Ter corpo é estar sujeito à gravidade. Por isso, a dança é uma rebelião. Não é o corpo em movimento que faz a sua essência. Esta não é outra coisa senão a revolta contra a nossa condição, contra o facto de estarmos submetidos, por inexoráveis leis, à tirania da gravidade. Por um instante, ao dançar, o corpo eleva-se e, nessa eternidade que dura um momento, aquele que dança é livre, como num sonho.

terça-feira, 27 de março de 2018

Poemas do Viandante (679)

Ana Peters - Nuance de Negro (1995)

679. nuances de negro

nuances de negro
nadam no lago
da escuridão
ouve-se barulho
de braços
na água da morte
e um perfume
desenha ilhas
de trevas
nas vísceras da noite

(20/12/2016)

segunda-feira, 26 de março de 2018

Meditação breve (74) Sombras no lago

Alfred Stieglitz, Shadows in Lake, 1916

Os homens estão sempre dispostos a falar de si e da sua excessiva importância no mundo. Esquecem que nem pó sequer são, mas sombras reflectidas num lago. Não é que não existam belas sombras. Existem, aliás sombras belíssimas, mas não deixam de ser sombras que logo se desvanecem e são esquecidas. E aqui estará a maior felicidade de uma sombra: ser esquecida.

domingo, 25 de março de 2018

Uma cegonha

Leo Matiz, Frida Kahlo tomando el sol,1941

Conheceu-a bem, julgo. Talvez o dia mais memorável da minha vida foi aquele em que ela se deitou ali mesmo. Está a ver a sombra da árvore? Foi aí. O sol banhava-a  e ela resplandecia. O vento levantava-lhe o vestido. Não tinha qualquer peça de lingerie, apenas a pele. Esplêndida. Confesso que a desejei. O que me assombrou não foi a beleza do rosto nem o corpo magnífico que vento descobria. Foi a sua partida. A certa altura, pôs-se de cócoras, o vento enfunou-lhe o vestido e, pode crer, este transformou-se em asas enormes e cintilantes. Estremeci, maravilhado. Então, ela levantou voo e desapareceu atrás das nuvens. Era uma cegonha.

sábado, 24 de março de 2018

Haikai do Viandante (355)

JCM, Convento de Cristo, Tomar, 2018

Pedras sobre pedras,
o frio murmúrio do vento.
Um dia que passou.

sexta-feira, 23 de março de 2018

O homem que escutava o mar

Ferdinando Scianna, Jorge Luis Borges listening to a shell, Palermo, 1984

Agarrou numa concha e levou-a ao ouvido. Oiço o oceano, gritou e riu-se. Depois, sentou-se, pegou na caneta e escreveu sobre as ondas que ouvira e o mar que só então passara a existir. De vez em quando, tornava-se a levantar, segurava, com mil cuidados, a concha, levava-a ao ouvido e dizia: oiço o oceano. Depois, ria-se e continuava a escrever as gaivotas que nasciam e os cardumes que passavam ao longe. Quando anoiteceu, da sua caneta saiu um pequeno barco a remos. Então, levantou-se, tirou a gravata, desapertou o colarinho, entrou no barco e remou. Ao largo, um enorme transatlântico esperava-o. Nunca mais voltou.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Poemas do Viandante (678)

Takesada Matsutani - Propagando un sueño (1961)

678. os sonhos sonham-se

os sonhos sonham-se
no vazio
propagam-se na pobreza
do coração
e são semente
silenciosa
no húmus do desejo
no útero da terra

(20/12/2016)

quarta-feira, 21 de março de 2018

Meditação breve (73) Noites de luar

Alvin Langdon Coburn, Moonlight, c. 1907

Talvez as noites de luar sejam propícias ao devaneio dos amantes, mas a luz que cai sobre a terra tem o estranho poder de revelar o que há de sombrio no mundo. Não é o amor que essa luz suscita mas o terrível que nele se esconde. O que torna romântica uma noite de luar é o perigo que ela deixa entrever.

terça-feira, 20 de março de 2018

Biografias 11. Arlequim adormecido

Pierre Dubreuil, Harlequin - Still Life, 1923

Cansado de seduzir Colombinas, Arlequim adormece e a máscara cai-lhe do rosto. Assim exposto à devassa do olhar, não passa de uma natureza morta à mão do ciúme de um qualquer Pierrot.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Haikai do Viandante (354)

Jean Dieuzaide, Rabello sur le Douro, 1954

Um barco navega
sobre o silêncio do rio.
Luminosas margens.